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A linguagem formaliza a memória. Dependemos das memórias uns dos outros para criar linguagem. Esse conjunto de significados adquiridos, quando em rede, estruturam a sociedade. Rede que se dá no encontro de memórias e que se descobre vazia de sentidos na ausência desses encontros. Estamos interditados. Condenados apenas às próprias memórias que, enclausuradas em seus próprios artífices, apresentam sinais de falha. Memória sem USO. Nova linguagem, signo aflito.
Se o que podemos lembrar era alguma coisa ontem, amanhã não passará de um hoje carcomido. Miséria de livro sem páginas. Janelas costumavam representar a ambiguidade do ir e vir, da lúdica importância de compreensão da liberdade. Em si mesmo, o gesto fútil de abrir e fechar se torna a corpulenta objeção à` anteriormente citada, inepta, liberdade.
Movimento mais lógico: resignação. A insensatez do momento navega em águas desconhecidas. A história em seus processos sempre nos confundiu. Uma batalha de narrativas que nunca escutou o cessar fogo. Vivemos na constante ameaça de que uma palavra inicie um banho de sangue. Mas, e se o sangue que for derramado for do mesmo vermelho das veias? Não pensemos em sangues de outra cor, mas sim num abismo furta-cor que a cada um espanta onde cada um se planta.
A literatura é meio de desbravar o outro e todas as fronteiras dentro de si. Existe uma responsabilidade inerente a essa arte, comumente representada como uma responsabilidade solitária, ou até mesmo, particular e egoísta. Não. É na especificidade dessa solidão que também se gera uma relação coletiva. A submissão ao exercício das memórias afetivas, fronteiriças e do outro é o cruel e necessário combate a uma noção de vida em que impera a busca por uma saída – ela sim, particular.
O gato de Kafka responde às inquietações do rato: “Você apenas precisava alterar a direção da corrida”. Depois o engole, conforme sua natureza. O gato é juiz, mas também é carrasco, e o jugo do aparato humano pela liberdade é de que ela se resume a um extenso mecanismo para buscar salvações pessoais. A Literatura não somente analisa tais miasmas de nossa condição, como é ferramenta de combate. O exercício da angústia é um exercício de humanidade, e através dele encontraremos terra fértil. A escrita: ato contemplativo que apresenta função metafórica com o mundo, como lembra Baudelaire: “A imaginação é a mais científica das faculdades, porque apenas ela pode compreender a analogia universal”.
No clamor de uma contemplação bífida, exterior e interior, as artes visuais encontram, senão o maior, um poderoso mecanismo. O artesão funde forças e naturezas descompassadas e ali encontra a paciência. Trata-se, então, de um garimpo. Esse exercício consiste em manejar a desproporção entre a leveza e o horror. É um labor da contradição. O artesão dá forma à memória de um urro pessoal, um urro de ódio e justiça, que verte nos detalhes ao seu oposto. A ressignificação da imagem é vetor de uma nova composição dos afetos e das lembranças. Antonin Artaud, ao escrever o poema-ensaio “Van Gogh, o suicidado da sociedade”, solidifica esse exercício artístico da contradição como intento máximo do registro e da memória: “seus girassóis de ouro brônzeo estão pintados; estão pintados como girassóis e nada mais, mas para entender um girassol ao natural, é preciso agora voltar a Van Gogh”.
É no caminho do encontro que essa edição pertence. Uma reunião de memórias colhidas antes da pandemia e ressignificadas após o início do isolamento. O processo de adaptação dessa edição diante das obras serviu-se do diálogo da distância não como causa, mas como efeito. Para suprir de forma orgânica a potência desses encontros no produto final. Arte é corpo. Páginas que podem inspirar algo nesses tempos sufocantes. Lançamento digital e impessoal, resposta aos tempos em que o papel e o tato estão inviabilizados.
Hoje somos os inimigos do espaço e do tempo. Sentimos saudades de não saber o que somos. Corroboramos com o fracasso da história. Sísifo tem sorte. A pedra que nos foi destinada ainda não parou barranco abaixo.
USO o que posso usar, dou-lhe um nome e na fraqueza de minha humanidade acredito que ainda somos jovens. Louvemos a escrita, processo de interlocução a distância. Chance de reescrever. De apagar de novo. De tecer a linha no papel. Resta o USO do medo como perda do medo.
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Há uma valorização inerente ao projeto de modernidade para tudo o que reside no valor prático. O confronto se dá por meio da demência e desrazão.
A linguagem define nossa existência animal. Seus USOS são o componente essencial para possibilitar a vida em sociedade. Constituição de cultura. Um novo imperativo se apresenta diante das transformações digitais e suas implicações existenciais.
A USO é catarse para esse devir. O meio é a disseminação para as narrativas de uma sociedade que apresenta sinais de colapso em escala global. O conteúdo é a tentativa de dar sentido aos rumos que serão desenhados. A arte é vetor central de ressignificação e do confronto. A arte é rito.
Do enterro à canibalização, do canto fúnebre ao corpo bebido, são esses os ritos de valoração da morte que representam aos valores modernos uma simples distração à sobrevivência. Um desafio às intempéries cotidianas que se manifestam entre o predador e o cansaço.
São dessas distrações que fazemos USO. Matéria-prima linguística do que esquecemos de ser. A demência como ferramenta para fecundar sentidos e valores em terras devastadas. Para confrontar a efígie da morte ou do próprio vazio. Para se assumir prole racional da desrazão. É essa característica que nos dá força catártica: do trauma à purificação.
Acreditamos que foi possível percorrer longos passos no processo que resulta nesta edição que você carrega. A América Latina é o horizonte daqui em diante. Objetivo inegociável de representar uma região que tanto carrega em comum e sangra pela união como complemento exponencial das possibilidades de um novo futuro para o continente. A expansão desta terra denominada Brasil é abarcada em suas particularidades e preenche cada vez mais as páginas que você vai ler. O local é processo. O sentido é a existência.
A USO é um meio aberto para todas as expressões e assim continuará sendo enquanto essas páginas fizerem sentido. Trocas, provocações e critérios permearam os meses que levaram à conclusão desse processo.
Acreditamos na contribuição que este projeto carrega em oposição à interrupção violenta de ideias que observamos em todo o mundo. Em esferas virtuais e analógicas. Apresentamos algo que incomoda, que emociona e que tenta traduzir o que nos incomoda e emociona no mundo de hoje.
Mais uma vez, o USO é livre.
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Há uma bolha lisérgica que envolve os tempos. Não há nada mais hediondo que o eco sistêmico. A criação é um meio de sobrevivência. A sujeição, um passaporte para a covardia. O que há de infantil em nós não pode ser deixado de lado. A inocência da dúvida como arma contra o desespero. Em suas mãos, um produto. Em movimento, uma ideia: USO
Às margens do espetáculo, a literatura nacional inova e se desenvolve. Experimenta-se ao abolir certezas. Os olhos assistem crescer o fascínio e o fascismo. Escritores e artistas resolvem abandonar a posse da linguagem. O uso nos parece mais sápido. A arte é o paladar para o mundo.
Temos fome. O aguardo ansioso da goela inchada e o buraco negro do estômago por domar para que o vômito permaneça sempre poesia. O banquete está pronto e estão todos convidados a se lambuzar no óleo quente que escorre das palavras e sangra as gengivas.
Aqui estão reunidos textos, ilustrações, colagens e fotografias afaimadas pela destruição da tradição e que não existem sem ela. Um processo cuidadoso de ressignificação que desafia os olhares assustados para enfrentar as incertezas que não podemos admitir e conclama para o ato de ser e fazer poesia. Do clássico ao vulgar é apenas uma orientação que guia uma geração perdida no êxtase de um novo mundo porvir. Use como quiser.
Eis o método!, a certeza da combustão espontânea. Da pintura rupestre ao roubo, do código ao som, da razão ao ilusionismo, do teclado ao papel, do material ao imaterial, e todo o curto tempo de uma vida para crucificar, santificar e aniquilar. O zero bate todo o dia na porta.
Então, há de ser ninguém e todos, não há lugar para um nome. Não há propriedade. Somente uso.
A solidão ativa é um meio para o banquete coletivo dos ordinários,
caídos ou não
A solidão passiva é um meio do horror sistêmico
para que sejamos vis
à nossa covardia,
inspetores
de nossa condição produtiva
e amargos
ao nosso dever político
Prescrevem nossas cercas e o arame farpado com o melhor coeficiente de segurança
Prescrevem o modo do nosso pronome possessivo
Oh, Senhor, Deus dos desgraçados,
ainda deitado com o analfabetismo do céu e com a indiferença da cabra?
A palavra é nossa!
Somos porque negamos a simples resposta aos estímulos
Somos porque agimos nas noites de ureia, chumbo e bosta
Somos porque não somos
E não somos porque carregamos todos os rostos do Tempo
Não estamos sozinhos
Para cada tentáculo
teremos a memória do suplício:
desde cavalos desmembrando condenados
à Sucursal do Inferno
Para cada tentáculo
teremos a marca das ondas, do ferro, do sal e do suor roubado
que navios tumbeiros deslocaram ao pélago civilizatório
Para cada tentáculo
despertaremos nosso carrasco metafísico
nossas dores nossas contrições diárias
e sangraremos por toda a América Latina e por todos os clandestinos
Para cada tentáculo
teremos as pegadas maternas atrás de ossos no deserto do Atacama
teremos todo o carbono calcificado
Para cada tentáculo
teremos os botecos com seus sonhos mudos
teremos todo o esgoto cartografado
e talharemos no excremento beatificado
uma rosa faminta
E enquanto procuram níqueis
na noite sem fim
sequestraremos a noite
cantaremos junto às bruxas da amaldiçoada peça escocesa
beberemos do amor que transfigura o copo
seremos amantes
corpo-discurso
e no fundo da noite
os rejeitados terão,
em uma mão,
a Serpente Cibernética degolada
ungida pelo próprio sangue elétrico –
que a faz real
E na outra mão,
a Serpente Fascista
enrolada
com o rabo na própria boca.